Por quem os sinos dobram?
Eles dobram por ti
De devoções para ocasiões circunstanciais
Meditação VXII
“Nunc lento sonitu dicunt, morieris.”
(Como lento som dizem agora: morrerás)
Este sino, ora a dobrar por outro lentamente, me diz: “Irás morrer”.
JOHN DONNE
Talvez aquele por quem este sino dobra se encontre tão enfermo que não sabe que é por ele que ele dobra; e talvez eu me julgue tão melhor do que realmente estou, que aqueles que me rodeiam e veem o meu estado o tenham mandado dobrar por mim, e eu nada sei. A Igreja é católica, universal, e assim são seus atos; tudo o que faz pertence a todos. Quando batiza uma criança, tal ato me diz respeito, pois aquela criança, dessa forma, se une àquele corpo que igualmente é minha cabeça, e se enxerta naquele corpo do qual sou membro. E quando ela enterra um homem, tal ato me diz respeito: a humanidade toda é de um só autor, e constituiu um só volume; quando um homem morre, não é um capítulo que se arranca do livro, mas é apenas um que se traduziu para idioma melhor; e todos os capítulos devem assim ser traduzidos. Deus emprega diversos tradutores; alguns trechos são traduzidos pela idade, outros pela doença, outros pela guerra, outros pela justiça, mas a mão de Deus está presente em todas as traduções, e é sua mão que reencardenará todas as nossas folhas dispersas para aquela biblioteca onde cada livro deverá jazer aberto um para o outro. Portanto, assim como o sino ao anunciar o sermão não convoca apenas o pregador, mas a congregação inteira, assim também este sino convoca a todos nós; mas principalmente a mim, trazido tão próximo a soleira por esta enfermidade. Houve outrora uma disputa, que terminou em processo ( onde a piedade e o orgulho, a religião e o egoísmo, se confundiram), para se saber qual das ordens religiosas cabia o direito de soar primeiro o toque das matinas; e determinou- se que cabia soá-lo primeiro a quem primeiro se levantasse. Se compreendêssemos bem a dignidade deste sino que nos chama para oração vespertina, também nos sentiríamos felizes em nos apressarmos para torná-lo nosso, entendendo-se sempre que pode ser nosso sem deixar de ser a quem de fato pertence. O sino dobra por quem pensa que por ele o faz; e, apesar de interromper-se novamente, a partir do instante em que sua impressão atuou sobre o individuo, ele se uniu a Deus. Quem não lança o olhar ao sol quando este se levanta? Mas quem afasta o olhar de um cometa quando este irrompe o céu? Quem não fica de ouvidos atentos a qualquer sino que repique para qualquer circunstancia? Mas quem pode afastá-los do sino que anuncia a passagem para outro mundo de um pedaço de si próprio? Nenhum homem é uma ilha, completa e si mesma; todo homem é um pedaço do continente, uma parte da terra firme. Se um torrão de terra for levado pelo mar, a Europa fica menos, como se tivesse perdido um promontório, ou perdido o solar de um teu amigo, ou o teu próprio. A morte de qualquer homem diminui a mim, porque na humanidade me encontro envolvido; por isso, nunca mandes indagar por quem os sinos dobram; eles dobram por ti. Nem podemos chamar isso de mendicância da miséria ou de empréstimo da miséria, como se nossa miséria não bastasse e tivéssemos que buscar mais nas casas dos vizinhos, tomando também a miséria deles sobre os nossos ombros. Na verdade, se assim o fizéssemos, seria uma cobiça desculpável; pois a aflição é um tesouro de que dificilmente um homem tem suficiente. Nenhum homem tem aflição suficiente para que, com ela, se torne sazonado e maduro e digno de Deus por meio dessa aflição. Se um homem levar um tesouro em barras, ou lingotes de ouro, sem qualquer porção de metal cunhada em moeda corrente, seu tesouro não há de pagar-lhe as despesas de viagem. A atribulação é um tesouro por sua natureza, mas só pode ser usada como moeda corrente quando, por meio delas, nos aproximamos cada vez mais de nosso lar, o céu. Outro homem pode estar doente, e a beira da morte, e essa aflição pode jazer em suas entranhas como o ouro na mina, sem nenhuma utilidade; mas este sino, que me diz de sua aflição, escavará e entregará esse ouro a mim se, porventura, meditando sobre o perigo de outrem, eu contemplar o meu próprio, e assegurar-me contra ele através de um recurso a meu Deus, que é nossa única segurança.
Nenhum comentário:
Postar um comentário